No nosso segundo dia em Bissau, tivemos nosso primeiro contato com a comunidade do bairro de São Paulo, no qual será construído o centro educacional. São Paulo é um bairro semi-rural de Bissau que fica próximo ao aeroporto, a cerca de 20 minutos de carro do centro da cidade. Segundo o diagnóstico feito pelo Instituto Elos, a comunidade tem aproximadamente 40 mil habitantes, com predominância da etnia papel. O Régulo, uma autoridade tradicional passada hereditariamente, é o responsável pela organização do solo e resolução de conflitos na comunidade.

O nome do bairro (igual ao da nossa cidade) não é uma mera coincidência. Foi por causa desse nome comum que os membros da Associação Amizade São Paulo (uma das associações de moradores do bairro) encontraram, na internet, a Fundação Gol de Letra. A partir do contato das duas instituições, surgiu a ideia de fazer essa transferência de metodologias educacionais e, posteriormente, de construir o centro educacional, junto com a Agência Brasileira de Cooperação, a UNESCO, o Governo de Guiné-Bissau e o Instituto Elos.

Logo que chegamos ao local onde será construída a escola, durante a tarde de terça-feira, fomos recebidos por umas 200 pessoas, que nos acolheram com uma grande alegria. Em um bongolô (parecido com o que chamamos de “bangalô” no Brasil), nos ofereceram lugar para sentar. Ao redor de nós, homens, mulheres, jovens e muitas crianças nos ouviam com muito interesse. Ali percebemos, definitivamente, toda a nossa responsabilidade, nem tanto com nossos empregadores, mas, principalmente, na construção daquele sonho. Só para dar uma ideia: embora os roubos (e a criminalidade em geral) sejam muito raros em Bissau, os membros da comunidade se revezam e ficam sem dormir para fazer a vigilância do canteiro durante a noite.

Depois de todos se apresentarem, ouvimos, pela primeira vez, o hino da comunidade São Paulo. “Si junta nos, i ka n’acaba mas. Amizade i forsa di vontadi” (traduzindo desse meu proto-crioulo para o português: “Se nos juntamos, isso não vai acabar. Amizade e força de vontade”), os versinhos que estão presentes na nossa vida aqui o tempo todo. Todos tiveram muito interesse em nos conhecer. Conversando com o pessoal da associação, aprendi as primeiras frases em crioulo (Como a ki bo nome? Como a ki bo’sta? / Qual é o seu nome? Como está?) e um pouco mais sobre a vida na comunidade. Uma parte curiosa: aqui é comum que homens andem de mãos dadas enquanto conversam ou andam juntos. O fato de terem me avisado isso antes não impediu que eu tenha ficado completamente sem-graça já na primeira conversa com um membro da associação.

No lugar onde está sendo construída a escola – um grande espaço vazio no fim do bairro, não havia muito mais que a brita para a construção. A vegetação do entorno não passa de algumas poucas palmeiras. Temos sofrido com o sol, que é especialmente forte no terreno da escola, todo aberto. A estação seca vai até o meio de maio. Até lá, nada de chuva e temperaturas próximas dos 40 graus todos os dias. O tempo é tão seco que é comum ver galhos pegando fogo sozinhos no chão. Mas o trabalho é muito gratificante e o esforço de todos para que a escola se torne realidade nos dá uma grande força.

O espaço para a "nossa" escola

Conhecemos uma escola já existente na comunidade, ligada à missão católica que deu nome ao bairro. É uma escola bem simples, mas bastante acolhedora. Ao redor do pátio de areia batida, ficam as salas de aula, em um estilo bem parecido com as escolas brasileiras, mas com uma diferença muito marcante: o comportamento impecável das crianças, extremamente comportadas e atenciosas (e deu para perceber que não era “para brasileiro ver”). Outra diferença interessante é o fato de os professores do que é equivalente aos primeiros anos do nosso ensino fundamental serem todos homens.

Pailão sagrado

Um dos lugares mais interessantes – e bonitos – do bairro é o pailão sagrado, uma árvore majestosa com um significado sagrado para as pessoas de fé animista, que são cerca de 40% da população do país (50% são muçulmanos e apenas 10%, cristãos). Ao pé dela, ficam vários potes com oferendas, cada um simbolizando um elemento da natureza. Na comunidade, também há algumas mulheres (ou meninas) que, desde crianças, são como discípulas da árvore.

Em São Paulo (e em boa parte de Bissau), as pessoas retiram a água que consomem de poços. A rede de energia elétrica está sendo estendida a toda a cidade, mas muitas casas ainda não tem acesso a ela por causa do preço – porque não têm dinheiro ou porque querem economizar. Esse segundo caso é o do dono do hotel em que estou, o que faz com que mais ou menos de quatro em quatro horas a energia caia. Daí é esperar o tempo de trocar o diesel do gerador e praguejar um pouco, principalmente quando perco o que escrevi para o blog.

Mas, feito o desabafo, podemos voltar a São Paulo…

Todo orgulhoso, carregando lenha para a família

Estou me dando muito bem com as crianças. Todas gostam muito de brincar e ficam disputando para ver quem vai segurar na nossa mão. Várias vezes, tive que oferecer meu braço para evitar uma briga. Também gostam muito de tirar fotos – até por isso tenho muitas fotos de crianças. Pedem toda hora “Posta, posta” (a maneira como elas chamam “foto”) e se divertem muito olhando como ficou na câmera. Também têm muita curiosidade pelo fato de eu ser branco. Logo no primeiro dia, um menino ficou se divertindo olhando os meus ossos da mão aparecendo. E na rua, por várias vezes, já tentaram puxar assunto chamando “Branco, branco!” (um taxista, muito espirituoso, me aconselhou a pagar na mesma moeda e responder “Preto, preto!”).

Estamos fazendo quase um intercâmbio de brincadeiras. Já ensinei o “Vivo-Morto” (nem sei como me lembrei disso) e eles estão me mostrando várias dos jogos daqui. Nesse aí debaixo (cujo nome eu não lembro), a criança com um arame tem que conseguir acertar a fruta, enquanto a outra tenta protegê-la com o galho. Tenho outros vídeos, mas não sei se vou conseguir postar tão cedo. O upload aqui no hotel não é dos mais rápidos e essas quedas de energia também não ajudam em nada…

Infelizmente, pela minha função, passo a maior parte da semana trabalhando na Embaixada, mas faço o possível para passar mais tempo em São Paulo, onde consigo me lembrar finalmente por que estou aqui. São muitas coisas para contar (e com certeza ainda serão muitas outras), mas não vou conseguir fazer tudo agora. Fica para a próxima oportunidade.

Curiosidades

– Embora não seja algo banal, não é muito difícil ver macacos nas árvores e muros de Bissau. Nessas duas últimas semanas, já vi três macacos, um deles “domesticado”, preso por uma coleira a uma casa.

– Aqui é tradição que no dia 8 de março (Dia Internacional da Mulher) maridos e esposas troquem de “função”. Muitos homens se vestem de mulher e vão fazer a feira, por exemplo. As mulheres também entram na brincadeira, se vestem de homens e fazem as tarefas tipicamente masculinas.

Observação

Daqui em diante, vou escrever posts por tema, não mais por ordem cronológica. Acho que é uma boa solução para minha falta de tempo para escrever. E também fica mais interessante para quem lê.