Faz exatamente cinco semanas desde a última vez em que escrevi aqui, correndo para fazer as malas, ainda anestesiado, sem conseguir pensar direito no que estava deixando para trás. Na correria, não vi meu último pôr do sol em Bissau. Não consegui ir ao lugar em que, de cima do hotel, via que a cidade terminava abruptamente. Não fiz a última refeição que estávamos planejando há semanas. Nem o tão esperado passeio de domingo em Bissau Velho.

Também não consegui chamar o Aliu, um menino engraxate sorridente que sempre fazia questão de me lembrar, na maior cara de pau, que o meu tênis estava sujo. E que inventou um truque fenomenal para que eu não esquecesse mais o nome dele, dizendo que nossos nomes eram parecidos, brincando, com o sorriso largo de sempre “Léo-Aliu-Léo-Aliu-Léo-Aliu…” Há três meses prometia para ele que, antes de voltar para casa, deixaria ele, finalmente, limpar meus tênis. Mas não consegui. Acabei ficando não só com o tênis sujo, como também sem nenhuma lembrança daquele meu amigo das ruas de Bissau.

Mas é claro que uma despedida corrida não é capaz de minimizar uma vivência de três meses. E três meses intensamente vividos, cheio de alegrias, surpresas, momentos de stress, crises de saudades, medo das coisas que eu conhecia, aprendizado, novos amigos e amigas, nos quais descobri que o mundo é muito maior do que eu imaginava. Que, apesar de pizza e Coca-Cola serem universais, cultura não é, de forma alguma, coisa de pouca importância. E pude ter noção de quanta coisa carrego comigo, das quais não posso fugir: um jeito de falar, de me vestir, de me relacionar com os outros e, mais do que tudo, o lugar de onde olho o mundo.

Profissionalmente, tive a minha primeira experiência direta trabalhando diretamente com o Estado, enxergando a burocracia “por dentro” e vendo como é difícil se lembrar o tempo todo de que ela não é o fim, mas o meio do meu trabalho. No fim, acho que me saí bem. Todas as contas foram aprovadas (pelo menos até agora), acho que deixei a casa arrumada para quem me sucedeu e passei em um difícil teste de controle psicológico e resiliência emocional, que é preencher documentos no meio dos corredores estreitos do mercado do Pindiquiti, mochila nas costas, debaixo da chuva, com um monte de gente passando de um lado para o outro. Também posso dizer com orgulho que o projeto não se atrasou um minuto sequer por causa de burocracia. E, se agora tenho certeza de que trabalho burocrático não é a minha praia, também estou certo de que saí – não só pessoal, mas profissionalmente – muito mais maduro.

Voltei com a noção de que vivo no que é provavelmente o país mais contraditório do mundo. Nossa história tem muito pouco de heróico, a miscigenação que nos faz tão especiais foi, em boa parte, resultado da violência, nossa cordialidade acaba disfarçando – e naturalizando – uma desigualdade de renda e de direitos desumana e irracional. Muita gente me pergunta se não foi triste ver tanta pobreza (palavra que deve ser a primeira que vem a cabeça da maior parte das pessoas quando se fala em África). Não nego que realmente me deparei com uma pobreza que nunca tinha visto antes. Mas, durante todo esse tempo, não vi nada mais degradante do que um barraco de beira de córrego, a rotina de um mendigo ou a vida em um cortiço em uma região decadente em qualquer grande cidade brasileira.

Apesar de tudo isso, tenho a certeza que ser brasileiro é, a cada dia mais, uma responsabilidade, não só com meu país, mas com o mundo. Não fui o primeiro a dizer o quanto o Brasil inspira as pessoas lá fora, apesar de todos os problemas. Espero que possamos mostrar, cada vez mais, que é possível ser grande “sem perder a ternura”. E que saibamos valorizar mais nossos irmãos africanos, dentro e fora do Brasil.

Dar essa volta pelo mundo também me fez voltar com uma grande vontade de conhecer o Brasil com “s”. Meu Brasil é muito pequeno, não tem estradas de terra nem casinhas de barro. É um “Brazil”, com “z” que parece a cada dia mais incompleto. Conhecer o Brasil de verdade é o plano para as próximas férias.

E, falando em planos para o futuro, decidi largar um pouco esse negócio de planejar no longo-prazo. Afinal, em questão de semanas você pode descobrir que vai passar três meses do outro lado do oceano, os quais vão fazer você repensar cada detalhe da sua forma de agir e de ver o mundo. Meu maior plano agora é continuar fazendo as coisas que fazem sentido para mim, que me fazem sentir útil e importante para os outros. É o que venho tentando fazer já há algum tempo. E até agora parece que vem dando certo…

Escrever isso me fez lembrar do momento em que descobri que tinha sido selecionado para o estágio. Da alegria da Mikha, o transtorno orgulhoso do Bruno, as brincadeiras dos amigos, o besteirol da lista de e-mails, a preocupação da minha mãe, o incentivo do meu pai, as recomendações da madrinha, a festa de despedida as dicas da Nayara, o companheirismo da Adriana, me acompanhando até o outro lado da cidade para tomar as vacinas, e todos os gestos e palavras das várias pessoas que, à sua maneira, estiveram torcendo por mim. De todos que acompanharam as fotos no Facebook e os posts no blog. A todas essas pessoas, muito obrigado! Tudo isso foi muito importante, acho que mais do que elas podem imaginar.

Por meio desse post, vou fechando esse blog que foi a melhor forma que encontrei para compartilhar um pouco do que vivi nesses últimos meses. Tudo que está escrito aqui não é 10% do que foi essa experiência. Em boa parte, por falta de tempo de escrever, mas, principalmente, porque não é possível passar a maior parte das coisas por escrito. Às vezes nem vale a pena. Minha Guiné-Bissau não são só narrativas, curiosidades, reflexões. Tem o cheiro de caju, o som do djembé, a visão da multidão colorida, a poeira das ruas, a profundidade os olhares, o afeto dos sorrisos, o carinho gratuito das crianças, as centenas de gestos de generosidade o tempo todo. Coisas que, para quem viveu, são muito mais do que podem parecer.

Guiné-Bissau é hoje para mim muito mais do que um dos cinco países mais pobres do mundo. Na verdade, é muita coisa ANTES disso. É a casa de amigos, um lugar que me fez menos “rapasinho” e mais “omi garandi” e que me ensinou a ser humano como jamais tinha me sentido. Como nas várias vezes em que chegávamos na comunidade e as crianças saiam correndo atrás do carro, chamando nosso nome, com uma alegria verdadeira pela nossa chegada. Lembro especialmente da primeira vez em que isso aconteceu, quando o Mérli – o menino mais brigão que eu conheci por lá – saiu correndo com a rodinha que ele gostava de rodar ali por perto do terreno da escola, tentando chegar antes do carro e chamando o “Lhéw”, que tinha brincado com ele no fim de semana anterior. Mais uma dessas coisas que nos fazem indescritivelmente felizes. Agora as batidas dos djembés não são só o som de tambores. São lembranças, cheiros, histórias, sensações… É um pedaço da minha Guiné, cheia de mistérios e de grandes problemas, mas também de sorrisos e gestos amigos. A Guiné que me fez feliz. Como já diz a sabedoria popular: “Guiné i sabi”.

Lembro que, no meu último dia em Bissau, vi uma família de americanos chegando no hotel, algo muito estranho de se ver por lá. Quando passei por eles e vi todas as malas, os aparelhos tecnológicos, o jeito de turista explorando a tão lendária “África” (para depois contar para os filhos e amigos histórias de aventuras “naquele lugar tão estranho”), tive uma sensação estranha, meio de raiva ou de ciúmes. Como se aquela terra fosse sagrada demais para isso. Passada a emoção do momento, só desejo que eles tenham aprendido a enxergar toda a beleza que estava ali em volta. Que essa experiência tenha sido, para eles pelo menos um pouco do que foi para mim.

Como já imaginava, quanto mais o tempo passa, mais consigo ter uma real dimensão do que tudo isso representou para mim. E acho que isso ainda vai durar por um bom tempo…

O balanço de tudo? Impossível dizer. Sei que, se vi que o mundo é muito maior do que imaginava, também percebi como sou pequeno. Hoje sou bastante cético com os grandes discursos sobre os direitos humanos, o fim da pobreza, a mudança na ordem mundial. Não são eles que me movem. Acredito, sim, no trabalho do médico que procura dar um tratamento mais humano mesmo tendo que atender cada paciente em quatro minutos; do pedreiro que, debaixo do sol, e enfrentando seus limites físicos, constrói as nossas cidades; do músico que abre mão de certezas pelo amor pelo que faz; do professor, que, desvalorizado financeira e socialmente, ainda vai todo dia dar suas aulas; das mulheres que levam bacias nas cabeças e os filhos nas costas nas ruas de Bissau. Dos heróis que vão morrer desconhecidos, sem estátuas, nomes de ruas ou grandes homenagens. Dos heróis do trem lotado e das casinhas de adobe ou de madeira. São eles que, na verdade, constróem o mundo.

São esses os heróis que me fazem ter certeza de que vale a pena acreditar e agir por esse tal “mundo melhor”, “tempo de justiça” ou como quer que se queira chamar. Sem aquela resignação de que qualquer coisa “já é alguma coisa”, mas sim com um desejo sincero de mudança, tendo a consciência que nem todo mundo pode sair ganhando, mas é possível construir uma forma mais justa de viver. E vale a pena continuar tentando. Nem que seja só porque o Mérli vai vir correndo atrás do carro.

Felicidade